Ordm; LIVRO - ENTRE A TERRA E O CÉU 2 страница

 

12.O refúgio no corpo carnal - Zulmira, terrificada, concordou que, embora não fosse assassina, nada fizera para salvar a criança, mas agora, arrependida, pedia o perdão da rival: "Perdoa-me! perdoa-me! prometo empenhar-me no refazimento da paz de todos... Serei uma es­crava de teu marido e restituí-lo-ei aos teus braços; converter-me-ei em serva de tua filhinha, cujos passos orientarei para o bem, mas, por piedade, deixa-me viver! Liberta-me! Compadece-te de mim!..." "Nunca! nunca! -- bradou Odila, friamente -- tua falta é imperdoável. Mataste! Deves confessar o delito perpetrado, à frente da polícia!... Dobrar-te-ei a cerviz! Serás recolhida à penitenciária, para que te mistures às delinqüentes de tua laia!..." "Não! não!" -- suplicou Zulmira, com sinais comoventes de angústia. "Se não aniquilaste meu filho -- bradou a rival --, devolve-o aos meus braços! Devolve-o! devolve-o!" Naquele momento, ambas se achavam à frente de determinada nesga da praia. Os olhos da pobre obsidiada adquiriram, então, estranho fulgor. "Foi aqui! -- rugiu a perseguidora, rudemente -- aqui consumaste o sinistro plano de extinção da nossa felicidade..." Ocorreu então uma cena como­vente: como se fora tangida de secretos impulsos, Zulmira desprendeu-se dos braços que a constringiam e, penetrando as águas, clamou, aflita: "Júlio! Júlio!..." Odila, perturbada e ensandecida, foi-lhe no encalço, mas a enferma, sentindo sua aproximação, rodou sobre os cal­canhares e disparou de volta ao lar. Varando a casa, incontinenti, dando a idéia de que o corpo adormecido era poderoso ímã a atraí-la, Zulmira despertou, alagada de suor, conservando no cérebro de carne a impressão de que vagueara em terrível pesadelo. Tentou gritar, mas não conseguiu. Faleciam-lhe as forças em colapso nervoso, insopitável. A dispnéia castigava-a com violência, enquanto as coronárias se mostra­vam intumescidas. (N.R.: Dispnéia significa dificuldade na respira­ção.) Clarêncio aproximou-se do leito e aplicou-lhe fluidos salutares e repousantes. Acalmou-se-lhe, então, o coração, vagarosamente, a cir­culação tornou à feição normal, e foi só aí que a desventurada mulher conseguiu gemer, clamando por socorro. (Cap. V, págs. 32 a 34)

 

13.No lar de Antonina - Clarêncio explicou a André que, para entender melhor o drama que se desenrolava no lar de Amaro, seria conveniente contactar com outras personagens ligadas ao caso, sugerindo uma visita ao pequeno Júlio, o que foi prontamente aceito por André e por Hilário. Na noite seguinte, Eulália deveria acompanhar duas senhoras encarnadas à visitação dos filhinhos que as precederam na grande via­gem ao mundo espiritual e que se encontravam no mesmo sítio em que o menino estava asilado. Na hora aprazada, o grupo foi em busca das re­feridas irmãs. Clarêncio substituía Eulália. Primeiro eles estiveram numa casa singela de remota região suburbana, onde vivia Antonina com três dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou. O marido a havia abandonado quatro anos antes, para comprometer-se em delituosas aven­turas, mas Antonina não desanimou. Trabalhava numa fábrica de tecidos, para sustentar a casa, e educava os filhos com acendrado amor ao Evan­gelho, sabendo, assim, resgatar com valor as dívidas trazidas do pre­térito próximo. Meses antes perdera o pequeno Marcos, de oito anos, atacado de fulminante pneumonia, e era com ele que se encontraria, de­pois da prece feita com os demais. André e Hilário ali ficaram, para auxiliarem nas orações e nos estudos de Antonina, enquanto o Ministro seguiu em busca da outra mãe. Numa sala desataviada e estreita, uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crianças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, a caçula da família, que pousava na mãe seus belos olhos azuis. Num recanto do humilde compartimento, triste velhinho de­sencarnado parecia estar à escuta. Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exemplar do Novo Testa­mento e sentou-se. Iniciava-se então o culto do Evangelho no lar. (Cap. VI, págs. 35 a 37)

 

14. Porque Jesus ensinou-nos o perdão - Lisbela, a caçula da casa, fez a prece de abertura, recitando as lindas palavras da oração dominical, ensinada por Jesus. Henrique, um dos filhos, abriu o Evangelho, ao acaso, restituindo o livro às mãos da mãe, que leu, emocionada, os versículos 21 e 22 do capítulo 18 das anotações do apóstolo Mateus: "Então Pedro, aproximando-se dele, disse: -- Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: -- Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete". Anto­nina calou-se, como quem aguardava as perguntas dos jovens aprendizes. Henrique, iniciando a conversação, perguntou: "Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?" Demonstrando vasto treina­mento evangélico, a senhora replicou: "Somos levados a crer, meus fi­lhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas as fal­tas do próximo, inclinava-nos ao melhor processo de viver em paz. Quem não sabe desvencilhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se do mal. Uma pessoa que esteja parada em lembranças desagradáveis ca­minha sempre com a irritação permanente. Imaginemos vocês na escola. Se não conseguirem esquecer os pequeninos aborrecimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é um colega menos amigo a pre­parar lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção do guarda enfa­dado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciência ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligindo a pro­fessora, desmoralizando a escola e prejudicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Nin­guém estima a companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou da censura". Dito isso, Antonina fitou o primogê­nito e perguntou: "Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?" O menino respondeu que não; ele escolheria água pura, cristalina... A mãe então asseverou: "Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espiri­tuais. A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio de lama e fel. Não é coração que possa reconfortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida. Se apresentamos nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a per­doar infinitamente, para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando em casa limpa". (Cap. VI, págs. 37 a 39)

 

15. Honrarás teu pai e tua mãe - Após breve intervalo, o jovem Haroldo indagou: "Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?" Antonina disse-lhe que sim. "Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?", insistiu o menino. "Ainda assim", respondeu a genitora, que quis saber por que o filho tratava de tal assunto com tamanha pre­ocupação. "Refiro-me ao papai -- disse o menino, algo triste --, papai abandonou-nos quando mais precisávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fez?" Antonina, revelando a nobreza de sua alma, respon­deu-lhe: "Oh! meu filho! não te detenhas nesse problema. Porque ali­mentar rancor contra o homem que te deu a vida? como condená-lo se não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nosso bem-estar se ele estivesse conosco, mas, se devemos suportar a ausên­cia dele, que os nossos melhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho. Há ser­viços que não podemos pagar senão com amor. Nossa dívida para com os pais é dessa natureza..." E ela mencionou que uma das mais importantes determinações ouvidas por Moisés no monte, quando recebeu os Dez Man­damentos, foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: "Honrarás teu pai e tua mãe". "A Lei enviada ao mundo -- acrescentou Antonina -- não estabelece que devamos analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amoroso respeito, sejam eles quais forem". Haroldo mostrou-se conformado, mas ainda pon­derou que se o pai estivesse junto deles talvez o Marcos não tivesse morrido, porque a família teria o dinheiro suficiente para tratá-lo. A genitora enxugou, apressada, as lágrimas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho, e continuou: "Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qualquer idéia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que ama­mos". Lisbela, aproveitando o ensejo, perguntou à mãe se Marcos podia vê-los, ao que ela esclareceu: "Sim, minha filha, eles nos ajuda em espírito, pedindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores re­cordações". Em seguida, Henrique fez a prece dominical e o trabalho terminou. A dona da casa repartiu com os pequenos alguns cálices da água cristalina que Hilário e André haviam magnetizado e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhos para a câmara em que se recolheriam todos juntos. (Cap. VI, págs. 39 a 41)

 

2a R E U N I Ã O

(Fonte: Capítulos VII a XI.)

1.Paixão e traição na guerra do Paraguai - Após o culto, André e Hi­lário permaneceram na casa de Antonina, onde aguardariam a volta de Clarêncio. Foi aí então que puderam reparar, com mais atenção, o an­cião desencarnado que se encontrava na casa. Ele se apresentava aba­tido e trêmulo e parecia inquieto e dementado. Densificando o perispí­rito, André e Hilário puderam tornar-se visíveis ao velhinho, que lhes perguntou se eles eram oficiais ou praças e, em seguida, referiu-se ao tema tratado no culto evangélico, pertinente ao perdão. Ele não enten­dia a necessidade de se discutir tal assunto com três crianças... "Comentários dessa natureza -- afirmou -- devem ser reservados para pessoas aflitas como eu, que trazem um vulcão no centro do crânio..." Dito isso, alteraram-se-lhe as feições e ele pareceu mais distante da realidade, passando a falar frases desconexas, relacionadas com a época da guerra entre Brasil e Paraguai. Mencionou então ter sido traído por seu amigo Esteves, que, aproveitando sua ausência da ci­dade, se insinuara em sua casa para tomar-lhe a mulher, Lola Ibarruri. "Durante um mês longo e terrível, suspirei pelo retorno aos carinhos dela", contou o velhinho. "Quando tornei ao lar, naquela estrelada noite de maio, encontrei-a nos braços do traidor... Lola tentou des­culpar-se, mas surpreendi-os juntos... Quis vingar-me, de imediato, espetando-o com meu punhal, todavia, as tropas deixariam a cidade, daí a três dias, e o meu inimigo, que se esgueirara na sombra, ante a minha aproximação, deu-se pressa em viajar, a serviço..." (Cap. VII, págs. 42 a 44)

 

2.Esteves é assassinado - O ancião disse ter sido tomado pelo ódio e prometeu vingar-se, o que fez algum tempo depois, envenenando Esteves. Mais tarde, casou-se e organizou grande família. Devotado à religião, desfrutara os benefícios dos santos sacramentos e julgava que tudo es­tivesse solucionado; todavia, após a morte do corpo físico, longe de encontrar o céu que lhe parecia cada vez mais distante, reconhecia que sua vítima continuava a persegui-lo por dentro... "Faz muito anos que me despedi dos ossos fatigados -- relatou a entidade -- e perambulo, aflito e infeliz, dentro de mim!... A princípio, procurei o sepulcro, na esperança de soerguer meus restos e, escondendo-me neles, esque­cer... esquecer... Compreendendo, porém, que meu desejo era de todo frustrado, fugi para sempre do lugar que me asila os despojos e devoro ruas e praças, buscando autoridades que me socorram..." André, afa­gando-lhe a cabeça branca, dirigiu-lhe palavras de consolo: "Acalme-se, meu irmão! quem de nós não terá desacertado no caminho da vida? sua dor não é única... Também nós trazemos o espírito pejado de afli­tivas recordações. As lágrimas de desesperação desajudam a alma..." Em seguida, pediu-lhe que esclarecesse melhor os fatos a que se reportara inicialmente, mas a lembrança de Esteves novamente o levou a uma si­tuação aflitiva, como se forças terríveis o comprimissem. E, nesse es­tado, o velhinho confessou: "Ah! não posso continuar!... Ele, nova­mente ele, a crescer dentro de mim! Observa-me com asco e ainda lhe ouço as últimas palavras no estertor da morte..." (Cap. VII, págs. 44 a 46)

 

3.O caso Leonardo Pires - André conclamou-o a que tivesse fé. Ele respondeu que costumava rezar e informou: "Há alguns dias, fui à Igreja do Ro­sário, recordando como sempre a visita que fiz até lá, na véspera de minha partida para a guerra, e tanto rezei que tive a feli­cidade de ver o Marechal, que me apareceu, de súbito..." (Referia-se ao Marechal Guilherme Xavier de Souza, seu amigo e protetor, por oca­sião da guerra em causa.) "Estava mais moço e incompreensivelmente refeito... Roguei-lhe proteção, ao que me respondeu, informando que o meu caso seria to­mado em apreço, que eu descansasse, pois ainda que os nossos erros se­jam grandes, maior é a compaixão de Deus que nunca nos desampara..." Exibindo, no entanto, um gesto de profundo abatimento, o homicida acrescentou: "Mas, até agora, não tive o menor sinal de reno­vação dão caminho..." André o confortou e prometeu ajudá-lo, e, no mo­mento em que o infortunado Espírito procurava abraçá-lo, Clarêncio chegou, tra­zendo consigo a irmã que fora buscar em casa. De imediato, o mentor compreendeu o que se passava. Concentrando-se por momentos, ele também se densificou para poder auxiliar com mais presteza. Sau­dado pelo velhinho, afagou-lhe a fronte e logo percebeu que sua mente fixara-se em recordações que o obcecavam. Abraçando-o com paternal ca­rinho, o Ministro indagou: "Que procura, meu irmão?" Ele então expli­cou que vinha suplicar o socorro de sua neta Antonina, a única pessoa que se lembrava dele com amor. Clarêncio colocou a destra sobre a ca­beça do inditoso irmão e, em se­guida, resumiu o seu caso. Ele se cha­mara Leonardo Pires, desencarnado vinte anos antes. Empregado do Mare­chal Guilherme Xavier de Souza, quando jovem, envenenara José Esteves, quando ambos integravam as for­ças brasileiras acampadas em Piraju, no Paraguai. O crime ocorreu num domingo de festa em campanha: 11 de julho de 1869. Uma missa fora ce­lebrada em pleno campo e o Conde d'Eu se encontrava presente. Leonardo não estava, porém, interessado nas palavras do sacerdote ou do Genera­líssimo. Sua mente só pensava numa coisa: vingança! (Cap. VII, págs. 46 a 48)

 

4.Reflexos da consciência de culpa - Leonardo se aproximou de Este­ves, que contava na época trinta anos de idade, e convidou-o, finda a festa, para uma refeição mais íntima. Juntos, comentaram entusiásticos as noitadas do Rio, ansiosos pelo retorno às seduções da retaguarda. Esteves estava loquaz e confiante no amigo, até que este lhe ofereceu um copo de vinho com o veneno fatal... Esteves bebeu, experimentou es­tranhas vertigens e morreu praguejando... As autoridades, embora cien­tes de que o soldado fora envenenado, julgaram o silêncio mais acer­tado e por isso o caso fora encerrado sem maior investigação... Leo­nardo seguiu em campanha e procurou esquecer o ocorrido. Conviveria ainda com Lola por mais algum tempo, mas, de volta à terra natal, de­sinteressou-se dela e casou-se no Brasil, deixando vários descenden­tes... Ao desencarnar, no leito de morte reconheceu que a lembrança do crime lhe castigava o mundo interior. Olvidou, pois, quase todos os episódios da existência para centralizar-se apenas nesse... José Este­ves já reencarnara e estava, no momento, em outros setores de luta, mas o homicida vivia com a imagem da vítima que se revitalizava, cada dia, em sua memória, ao influxo das sugestões da própria consciência culpada. Era a Lei de causa e efeito a cumprir-se, naturalmente... (Cap. VII, págs. 48 e 49)

 

5. Uma deliciosa excursão - O ancião nenhum interesse revelou ante a descrição feita por Clarêncio, mas ao ver Antonina, desprendida do corpo físico, em momento de sono, bradou: "Antonina! Antonina!... So­corre-me. Tenho medo! muito medo!..." A jovem mulher, que fora do corpo denso se mostrava muito mais delicada e mais bela, fixou-o, triste, e inquiriu: "Vovô, que fazes?" Leonardo curvou-se e implorou: "Ajuda-me! Todos na família me esqueceram, com exceção de ti. Não me abandones!... Ele, o meu ferrenho inimigo, me tortura por dentro. As­semelha-se a um demônio, morando em minha consciência..." Ao dizer tais palavras, o velhinho tentava enlaçar a neta, mas Clarêncio inter­feriu, indicando André e Hilário: "Ouça, amigo! Nossos irmãos promete­ram am­pará-lo e, decerto, cumprirão a palavra. Nossa abnegada Anto­nina, no momento, precisa ausentar-se, em nossa companhia, por algumas horas". E abraçando-o, paternal, pediu-lhe: "Você pode igualmente auxiliá-la. Guarde-lhe a casa, enquanto os meninos repousam. Amanhã, receberá, por sua vez, o socorro de que necessita". Leonardo sorriu conformado e aquietou-se. O pequeno grupo saiu, então, para a noite, em direção ao sítio onde se encontrava o filho de Antonina. Entrela­çando as mãos, e conservando as duas irmãs no circuito fechado de suas forças, eles iniciaram a formosa romagem. Viajando com a rapidez do pensamento, em breve atingiram formosa paisagem, banhada de suave luz, em que um par­que imponente e acolhedor se distendia. As duas mães se mostravam ex­táticas e felizes, e Antonina, apoiada em Clarêncio, como uma filha nos braços de um pai, inquiriu, maravilhada: "Porque não transformar esta excursão em transferência definitiva? Pesa o corpo, à maneira de insuportável cruz de carne, quando conseguimos sentir a Ter­ra, de longe..." "E' verdade -- concordou a outra irmã --, porque não nos é dado permanecer, olvidando os pesares e os dissabores do mundo?" Atento ao que elas diziam, Clarêncio respondeu, carinhoso: "Compreendemos, compreendemos quanta inquietação punge o espírito re­encarnado, mormente quando desperto para a beleza da vida superior, entretanto, é indispensável saibamos louvar a oportunidade de servir, sem jamais desmerecê-la". E acrescentou: "Achamo-nos ainda distantes da redenção total e todos nós, com alternativas mais ou menos longas, devemos abraçar a luta na carne, de modo a solver com dignidade nossos velhos compromissos. Somos viajores nos milênios incessantes. Ontem fomos auxiliados, hoje nos cabe auxiliar". (Cap. VIII, págs. 50 e 51)

 

6. Somos devedores uns dos outros - Todos se sentiam magnetizados e enternecidos ante a beleza da paisagem, em que flores de contextura delicada pendiam abundantes de árvores vigorosas, embalsamando as le­ves virações que sussurravam encantadoras melodias. Clarêncio sorria. Antonina, porém, como se estivesse irradiando insopitável curiosidade, mesclada de alegria, voltou a exclamar: "Ah! se morrêssemos hoje!... se a carne não nos pesasse mais!..." O Ministro, contudo, imprimindo mais grave entonação à voz, mas sem perder a brandura que lhe era pe­culiar, considerou, de imediato: "Se hoje abandonassem o veículo de matéria densa, quem diz que seriam felizes? Quem de nós obterá a su­prema ventura, sem a perfeita sublimação pessoal?" E, fitando Antonina com bondade, observou: "Agora, vocês visitarão filhinhos abençoados que a morte lhes arrebatou temporariamente ao convívio terrestre. Vo­cês se sentem como que num palácio dourado, em pleno paraíso de amor, mas, e os filhinhos que ficam? Haverá Céu sem a presença daqueles que amamos? Teremos paz sem alegria para os que moram em nosso coração?" Em seguida, após afirmar que a lembrança dos filhos aprisionados no Planeta acorrentá-las-ia ao mundo carnal, Clarêncio asseverou que "a ventura maior de quem ama reside em dar de si mesmo, a favor das cria­turas amadas..." As duas mulheres ouviram e nada disseram, mas o Mi­nistro considerou: "Somos devedores uns dos outros!... Laços mil nos jungem os corações. Por enquanto, não há paraíso perfeito para quem volta da Terra, tanto quanto não existe purgatório integral para quem regressa ao humano sorvedouro! O amor é a força divina, alimentando-nos em todos os setores da vida e o nosso melhor patrimônio é o tra­balho com que nos compete ajudar-nos, mutuamente". "E' pelo trabalho que nos despojamos, pouco a pouco, de nossas imperfeições. A Terra, em sua velha expressão física, não é senão energia condensada em época imemorial, agitada e transformada pelo trabalho incessante, e nós, as criaturas de Deus, nos mais diversos degraus da escada evolutiva, aprimoramos faculdades e crescemos em conhecimento e sublimação atra­vés do serviço..." (Cap. VIII, págs. 52 e 53)

 

 

7.Porque ignoramos o passado - Antonina, que parecia mais acordada que sua companheira para a contemplação do quadro que os circundava, perguntou, com enlevo: "Porque não guardamos a viva recordação de nos­sas existências anteriores? não seria bendita felicidade o reencontro consciente com aqueles que mais amamos?" Clarêncio concordou com a jo­vem mãe, mas lembrou que, na condição espiritual em que ainda nos si­tuamos, não sabemos orientar nossos desejos para o melhor. "Nosso amor -- asseverou o Ministro -- ainda é insignificante migalha de luz, se­pultada nas trevas do nosso egoísmo, qual ouro que se acolhe no chão, em porções infinitesimais, no corpo gigantesco da escória. Assim como as fibras do cérebro são as últimas a se consolidarem no veículo fí­sico em que encarnamos na Terra, a memória perfeita é o derradeiro al­tar que instalamos, em definitivo, no templo de nossa alma, que, no planeta, ainda se encontra em fases iniciais de desenvolvimento". Essa a razão pela qual nossas recordações são fragmentárias; contudo, nossa memória, a cada existência, converte-se em visão imperecível, a ser­viço do Espírito imortal. Antonina replicou, acentuando como seria bom poder reconhecer no mundo os antigos afetos e rever os semblantes ami­gos de outras eras, ao que Clarêncio respondeu, bondoso: "Retomar o contacto com os melhores seria recuperar igualmente os piores..." E lembrou que ainda "não sabemos querer sem desprezar, amparar sem des­servir". "Sem o esquecimento transitório, não saberíamos receber no coração o adversário de ontem para regenerar-nos, regenerando-o. A Lei é sábia", asseverou o Benfeitor Espiritual. Adiante, o cenário era be­líssimo. Bandos de aves mansas pousavam na ramaria que brilhava não longe. O Sol apresentava perceptíveis raios diferentes, até então des­conhecidos à apreciação comum na Terra, provocando indefiníveis combi­nações de cor e luz, enquanto harmonioso casario surgia aos olhos do grupo. Viu-se então que centenas de gárrulas crianças brincavam entre fontes e flores de maravilhoso jardim. (Cap. VIII, págs. 54 e 55)

 

8.No Lar da Bênção - Doce melodia que enorme conjunto de crianças acompanhava, cantando um hino delicado de exaltação do amor materno, vibrava no ar. Aqui e ali, sob tufos de vegetação verde-clara, muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos braços. Era o Lar da Bênção, onde muitas irmãs da Terra vinham visitar seus filhi­nhos desencarna­dos. Tratava-se, segundo informou Clarêncio, de impor­tante colônia educativa, misto de escola de mães e domicílio dos pe­queninos que re­gressavam da esfera carnal. De repente, o Ministro in­terrompeu sua fala, porque Antonina e sua amiga, tomadas de jubilosa aflição, como se fossem atraídas por forças irresistíveis, dirigiram-se aos filhi­nhos que ali cantarolavam alegremente. Enquanto a que era menos conhe­cida de André enlaçava um louro petiz, com infinita alegria a expres­sar-se em lágrimas, Antonina abraçou um formoso menino, gri­tando: "Marcos! Marcos!..." "Mãezinha! Mãezinha!", respondeu a criança, co­lando-se-lhe ao peito. Clarêncio informou a André e Hilário que o pe­queno Júlio, filho de Amaro e Odila, não se encontrava no grupo, visto como sofria ainda anormalidades que não lhe permitiam o convívio com as crianças felizes. O menino estava no lar da irmã Blan­dina e eles para lá rumaram. Em instantes, chegaram diante de pequenino castelo muito alvo, em que se destacavam as ogivas azuis, coroadas de trepa­deiras em flor. A irmã Blandina recebeu-os sorridente, apresen­tando-lhes Mariana, uma senhora simpática que lhe fora avozinha no mundo. Findas as saudações usuais, Clarêncio perguntou pelo pequeno Júlio. Blandina encaminhou-os a um quarto, ornamentado de róseos en­feites, onde um menino repousava num leito muito branco, e explicou: "Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez completamente. Ainda grita sob pe­sadelos inquietantes, como se estivesse a sofrer sob as águas. Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer mais receptivo ao nosso ca­rinho. Insiste pela volta a casa, todos os dias". (Cap. IX, págs. 56 e 57)